Espírito de Natal?



Uma das memórias que tenho do Natal é estar na salinha mínima da casa dos meus avós maternos, onde cabiam sofás, mesa de jantar e nós todos, sentados para comer bacalhau cozido, embora o que me interessasse fossem as toneladas de bolinhos de bacalhau da minha avó (não há iguais) que já tinha comido à socapa na cozinha. 

A mesa era redonda e muito pequena, mas tinha braseira e fazia muito frio, não havia outro sítio onde se pudesse estar. As janelas tinham umas cortinas castanhas e cor-de-laranja do mais retro que se possa imaginar (na altura eram só cortinas, a dada altura ate comecei a achá-las um bocado feias, mas que agora gostava de saber delas). O candeeiro, para além de também ser cor-de-laranja, era elástico e baixava e subia conforme necessidades e vontades (julgo que se terá estragado à custa de tanto puxão e brincadeira).

Depois do jantar, jogávamos ao rapa com pinhões e confetes de açúcar manhoso, Rapa, tira, deixa, põe. O meu avô materno ria imenso porque, sendo um enorme exemplo de bonomia e generosidade, era um grande apreciador da vida e da diversão - naquela noite, a folia passava por nos trocar as voltas com o jogo, satisfeito com a sua habilidade e com a nossa falta de visão. 

A ideia que tenho do meu pai, que trabalhava todos os dias, a qualquer hora, e a partir de determinada altura nem sequer tirava férias, encostava-se no sofá e dormitava. Ou apreciava-nos, não sei. Nunca sabemos os momentos que devemos apreciar porque vamos precisar deles mais tarde. O melhor mesmo é apreciá-los todos. 

Quanto às prendas, havia uma ou duas, mas só as víamos no dia seguinte, era o Pai Natal que as trazia, ou talvez fosse o Menino Jesus, e se nos tivéssemos portado bem. Ao lado da árvore estava sempre um envelope com uma nota e um Pai Natal de chocolate (obra do meu avô). E um embrulho. O embrulho. 

Era mais do que suficiente. Aquela alegria desmedida (daquela de causar borboletas na barriga) mais do que bastava, tremíamos de emoção ao desvendar o segredo daquele embrulho que, quase sempre, trazia exatamente aquilo que queríamos, a surpresa escolhida com muita ponderação depois de expurgar o que também gostaríamos de ter mas não era tão importante. Limitávamo-nos (quem tinha essa sorte) ao que nos fazia sonhar durante quase todo o ano porque no que sobrava dele (aniversários excluídos) não havia prendas (só roupa nova na Páscoa). 

Era mais do que suficiente, até porque já cheirava a cabrito e a bolinhos de bacalhau outra vez. 

Não havia na altura a sofreguidão da quantidade, do rasgar papel atrás de papel e correr para rasgar o seguinte até cair para o lado de cansaço, enquanto se insistia em tirar tudo das caixas quase blindadas, apertar e desapertar parafusos, não mexas, deixa-me acabar isto, desliga essa coisa barulhenta, que pilha de nervos, afinal não temos pilhas, pais e filhos desgastados já sem vontade de nada, que raio de Natal é isso? 

Nunca quis repetir isso com o meu filho mas há dias, em mais uma tentativa frustrada de lhe arrumar o quarto, constatei o que já desconfiava: todas as prendas oferecidas no Natal para serem "especiais" foram irrelevantes. Do que ele gosta é de mexer em papel. Cortar, desenhar os amigos, escrever cartas ("fazer correios"), transformar folhas em envelopes, fazer colagens em cima de colagens, inventar histórias e às vezes letras, escrever a sério e desenhar planos de cientistas loucos ou o jogo da Glória, porque feito por ele fica mais torto mas tem mais piada.

Não sou eu que o vou contrariar. A professora diz que ele não sabe pintar (e eu sei que ela tem razão) mas sabe outras coisas e não conheço pintores famosos por desenhar tudo perfeitinho dentro dos contornos com as cores supostamente certas. 

A questão preocupou-me porque pensei que o prejudicava na caligrafia. Não é o caso, Teve muito bom. "Muito Bom" a português, matemática e estudo do meio, em todos os quadradinhos em que era preciso colocar cruzinhas e "Muito Bom" na avaliação geral. Eu só quero que ele seja uma pessoa feliz, mas perceber que o trabalho que fazemos em casa também importa para o trabalho da escola é um orgulho inigualável.

Não o vou massacrar com as pinturas nem no gosto pelos desenhos animados, que nada me sabe melhor do que estar no sofá, embrulhada numa manta a ver televisão, isso sim, para mim é Natal, nem que agora seja a ver episódios repetidos de desenhos animados. Bolos não faço que não tenho jeito, nem sequer gosto dos doces de Natal, só não resisto ao leite creme (e talvez à aletria) da minha avó. Prefiro tudo o que tenha chocolate, leite condensado e natas e nisso o meu filho veio para me salvar. Quando ele tinha uns três anos, tentando antecipar o quase desastre do S. João em que não havia bolo para celebrar o aniversário do santo, enfiei-me no trânsito e na Tavi para desenrascar uma charlote (que delícia) e, em vez de cantar parabéns, ocorreu-me ser mais oportuno cantar uma canção de Natal. 

Tenho com esta época uma relação muito estranha. Acho que, em parte, é porque a minha familia nunca morou toda no mesmo sítio. A minha mãe é transmontana. O meu pai do Minho. No Natal é suposto estarmos todos juntos. Mas nunca estávamos. 

Depois, o meu pai morreu, a minha mãe morreu também quase toda, deixou de fazer árvore de Natal. As coisas nunca mais foram as mesmas em coisa nenhuma, no Natal também não. O meu avó materno também já não está lá para ensinar o jogo do rapa ao bisneto e a minha avó, que é um doce, ficou um nadinha mais amarga. Ficámos todos. Rapa, tira, deixa, põe. Já quase ninguém sabe o que isso é. 

Depois da minha maternidade, o problema agravou-se, porque nem sequer moro em nenhum dos locais onde reside a minha (nossa) família. É preciso tomar decisões, agradar a todos, ir a todo o lado, passar muito tempo no carro. Por isso, o meu Natal é a manhã do dia 25, quando estamos só nós os três, de pijama e ainda estremunhados, com o nosso barulho e o nosso silêncio, a desembrulhar duas ou três prendas, a admirar a alegria e o sorriso do miúdo. Rapa, tira, deixa... Deixa estar, é isto, assim está bom.

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