Não me sinto a envelhecer, mas sim, é algo assustador: o miúdo já vai para a primária, trabalhos de casa, chegar mesmo a horas, preparar a mochila, convencê-lo de que a casa precisa de espaço as coisas da escola, arrumar brinquedos e material escolar de forma funcional numa casa que não cresce, não desesperar quando o que apetecer é deitar tudo ao lixo porque sabemos que aquilo se vai voltar contra nós (eles vão-se lembrar daquele brinquedo com que nunca brincaram, que andou sempre perdido, mas que sabem que sabem que têm e que um dia vão querer - e vão-nos pedir ajuda para procurar).
Não vai ser fácil convencê-lo que não pode continuar a brincar em cima da mesa da sala, porque os horários vão ser mais apertados e continua a ser preciso fazer o jantar, comer, tomar banho, agilizar tudo, ter a certeza de que a mochila está pronta, se amanhã é dia de ginástica ou de música, procurar lápis e borrachas e peças de brinquedos debaixo do sofá quando já se está a morrer de sono. Ainda por cima, saber que os próximos quatro anos vão passar num instante e, qualquer dia, ele está um adolescente a dizer e fazer coisas muito parvas. Será pior do que as birras? Se calhar é apenas diferente. Mas nós já estivemos lá nas cólicas, nos choros com motivos que não conseguíamos desvendar, nas primeiras febres, nos vómitos, nas noites sem dormir porque está doente ou porque ainda não saiu da fase do "mama, arrota, muda a fralda, deita, tenta adormecer, voltar acordar para mais mama, arroto, fralda, e depois choro por coisa nenhuma". Bem soube o que fez quem inventou a tortura do sono, não deixar dormir não é coisa que se faça a ninguém, só quem por lá passou sabe a confusão que pode instalar-se nas nossas cabeças, passam-se anos e ainda estamos a tentar descobrir como conseguimos fazer tudo sem muitas asneiras.
Começa na segunda-feira, mas na segunda-feira ainda não há lanche. O início do ano letivo está marcado há meses, a escola do meu filho inicia-se no último dia do período definido, mas a Câmara não se lembrou do lanche das crianças. Talvez terça e quarta também não haja, não se sabe (vá lá que não se esqueceu dos almoços). Os pais levam, é só um dia ou dois, ninguém se chateia. E nas outras escolas, também é assim? As atividades extra-curriculares, que este ano vão todas ser feitas depois do horário letivo (até às 16h), também ainda não começam para já. O que irá a escola (ou devia ser a Câmara?) fazer às crianças cujos pais só podem ir buscá-las às 17h15, a hora a que as tais atividades vão terminar durante o resto do ano (a partir do momento em que começarem, coisa que não se sabe quando pode acontecer). Para conciliar a vida profissional dos pais com o percurso escolar das crianças (ou vice-versa), não deviam estar asseguradas com elas atividades até às 17:30, pelo menos? É que a essa hora talvez eu conseguisse estar na escola para o ir buscar.
Um quarto de hora mais cedo faz diferença, pode até fazer toda a diferença se for essa a hora a que saio do trabalho. "Ele pode ficar no recreio, mas sem vigilância. Quer dizer, se acontecer alguma coisa nós vamos ver, mas não estamos a tomar conta". Pois, uma criança que ainda não fez seis anos, no recreio, sozinho, à espera que o vão buscar depois de ver os colegas irem para casa ou para o ATL. Cenário fantástico. Mas é no recreio exterior?, pergunto. "É no recreio, a senhora conhece a escola?". Conheço, o recreio é na rua, se for desse que me está a falar ele ficará à chuva, nos dias em que chover, e no Porto não chove pouco. Matricule-se então a criança no ATL, e pague-se o dito cujo, o mês completo, por 15 minutos que seja, mais não sei quanto só pela inscrição. Veremos depois se se farão atividades de tempos livres depois das outras atividades (extra-curriculares?) ou só haverá apenas uma grande confusão de crianças cansadas a precisar e a querer ir para casa. Ainda há quem se questione sobre os motivos da quebra da natalidade. Não é preciso grande teoria. Basta ver a vida dos outros.
Um dos meus receios, com a entrada na escola, nem é gerir horários. É uma angústia velha, já não me faz mossa. A minha aflição é não saber ajudar a fazer os trabalhos de casa. Há coisas de que já não me lembro. Coisas tão simples como a caligrafia, aquelas letras todas desenhadas que, por acaso, eu até fazia muito lindas. O tempo que eu demorei, anos mais tarde, a tentar tornar a minha letra menos infantil, mais cool, a tentar desviar-me o mais possível do que me tinham ensinado. As letras desenhadas são complicadas de fazer, demoram tempo. Pior do que isso, quando andamos no ciclo ou no secundário ficam completamente "out", são foleiras que se fartam, ninguém consegue passar por essa fase com essas letras sem levar com umas valentes bocas (um bocadinho daquilo a que agora se chama bullying, raio de língua, não se encontram traduções fiéis para determinadas palavras? design, por exemplo, tem o mesmo problema: não é desenho, é design). A tal letra que trabalhei enquanto estudava, essencialmente para tentar pertencer ao lote das miúdas fixes (a malta porreira tem letra de adulto, não tem letra de primeira classe) ficou a minha letra até hoje. A desenhada foi-se.
Começa na segunda-feira. Estive lá ontem. A sala fica ao lado do sítio onde passou dois anos de jardim de infância durante os quais sempre teve a ambição de ir brincar para a primária. Não quis entrar em lado nenhum nem cumprimentar ninguém. Admitiu que estava a ficar nervoso. Isso é bom, reconhecer o que sente em vez de engolir ou fazer de conta que se é muito forte e que nada nos afeta, dizer "eu já sou grande" e pensar que se pode conquistar o mundo. Dizer que se está nervoso não é ser picuinhas. É ser verdadeiro. E identificar o que se sente: perceber que este friozinho na barriga são nervos, este aperto no coração quando se pensa nisso, são nervos. Vão voltar muitas vezes ao longo da vida. Eu também tenho, e sim, é por causa da primária. Não tem mal nenhum. A partir do momento em que sabemos como estamos, o resto vai-se fazendo e construindo todos os dias.
Estas crianças fazem de nós gente mais rija, nem eu sei bem quanto. Não são só os choros, também são os banhinhos em casa de banho ou quarto bem quentinho, seres que não se podem largar logo enquanto se lavam, quando conseguem virar-se, quando rebolam na cama, quando se começam a sentar mas ainda não ficam estáveis, quando começam a gatinhar e a andar aos tropeções e quando começam a correr e... nunca mais, na verdade. Mas este salto de cinco anos (no meu caso) trouxe-me de volta umas férias em que voltei a conseguir usufruir da praia. Sim, estive esticada na toalha umas horas, cheguei a passar pelas brasas, fiz caminhadas, não passei todo o tempo com as mãos na areia a construir castelos e escavar buracos, ou dentro de água gelada a tentar fazer de conta que me estava a divertir. Também saltei de dunas sem saber como, que quando era mais nada era pouco dada a este tipo de arrojos e atividades físicas, e defendi três penaltis num jogo de futebol em que fui guarda-redes. Também marquei um golo na cara do miúdo, mas não foi nada de grave. Se envelhecer também é isto, envelhecer é bom.
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