Perdido no recreio

A minha criança ficou esquecida/perdida no recreio no primeiro dia de aulas do primeiro dia de escola a sério até por volta das seis da tarde (suponho que desde as quatro), quando as auxiliares e as professoras que ainda lá estavam (tenho a impressão de que já só estava a diretora, mas não posso garantir, eu não vi, nas histórias que me contam - e já ouvi pelo menos quatro pessoas sobre o assunto - há contradições e nem todos os detalhes coincidem) começaram a arrumar as coisas para ir embora e viram (valha-me ao menos isso) que estava ali um menino novo sozinho, que os pais ainda não o tinham vindo buscar, que todos iam embora menos ele. Eu não sei se ele estava sozinho no recreio ou se lá estavam os meninos do ATL que ficam no chamado "prolongamento", até às sete da tarde, no máximo. Foi à hora que cheguei. Tive uma consulta. Estava marcada para as quatro, começou às seis. Cheguei às sete, no primeiro dia de aulas do primeiro dia de escola a sério. Só restava ele. Não me pareceu melindrado, nem ansioso, nem triste. A senhora que mo entregou nada disse. Eu pedi-lhe o número do ATL, para necessidades futuras, ela disse que não tinha, que pedisse no dia seguinte. Podia ter-me dito que o miúdo não foi para o ATL quando acabaram as aulas, que ficou no recreio, que foi preciso ir lá buscá-lo, que só se aperceberam a dada altura, a que horas é que isso aconteceu. Não contou. Nada.

Quando, no balanço do dia, lhe perguntei o que fez no ATL, ele disse que esteve lá sentado à espera. Foi o primeiro dia, não havia atividades extracurriculares, só era suposto que ficasse na sala de aula até às quatro. Ficou três horas sentado à espera? Sozinho? Não estavam lá mais crianças? Não brincou? Ficou três horas sentado à espera? Ele estava bem, nada inquieto, mas aquela ideia das três horas sentado à espera ficou a martelar-me a cabeça a noite toda.    

No dia seguinte a senhora que está a tomar conta do ATL da parte da manhã, a quem me dirijo para pedir o número de telefone, não sabe de nada, acha estranho. Comento com a professora, que nem tem nada a ver com o assunto e que me relata, no meio da barulheira gerada pela mistura do riso das crianças com as conversas dos outros pais (sobretudo das outras mães) que ele não sabia que tinha de ir para o ATL (eu tinha-lhe dito, até lhe mostrei a porta para onde tinha de ir), que as funcionárias da escola se aperceberam disso a dada altura, que foram chamar a diretora, que ela informou que ele tinha ATL, que então o menino foi para o ATL e que realmente verificaram que o nome dele estava na lista. Estava mas não o chamaram. Não vieram cá fora ver se estava ou não estava. Não tinham o meu contacto telefónico, apesar de eu o ter deixado várias vezes na ficha de inscrição. 

À tarde, segundo dia, chego consideravelmente mais cedo e ele está perto do portão, bem longe do ATL, a arrastar a mochila enquanto come uma maçã. Vou falar com a diretora. "Está a ver aquele menino ali ao longe? Devia estar no ATL. Já ontem era suposto ter ido". Ela sabia da história, contou-me a versão, está tudo muito no início, ainda é tudo muito confuso, eles ainda são muito pequeninos, as funcionárias não são as efetivas (essas estão de férias), não estão tão habituadas. Enquanto converso aprecio o comportamento dele, das crianças do ATL e das funcionárias. A dada altura, o porteiro abandona o posto e manda os meninos para longe  da porta que deixa fechada mas não trancada para que os pais que faltam possam entrar. Só então a funcionária do ATL vai ter com ele. Ele pouca a mochila lá dentro, vem cá para fora e faz o mesmo do que os outros: salta, corre, brinca a coisas que não se sabe se são abraços ou lutas, pendura-se em corrimões, esconde-se com outros em sítios onde supostamente estão todos proibidos de ir, basta piscar os olhos e desaparece, já está noutro canto, como os outros. 

Não quero que ele cresça numa redoma de vidro mas não gostei. De nada. De não terem o meu contacto. De  não terem verificado se ele estava ou não presente. De ninguém o ter encaminhado para o ATL. Ele perguntou-me porque é que eu não cheguei quando tocou. Era o que ele via no ano passado, ao sair do infantário: os meninos da primária a serem entregues aos pais, no portão, depois do toque. Eu não consigo estar lá à hora do toque. Tentei explicar-lhe o motivo, estou a trabalhar, apanho trânsito, nem que fosse a voar. Não sei se ele percebeu, acho que não. Apenas interiorizou. Verei mais tarde se o suficiente para hoje não ter havido episódios parecidos com os anteriores. Sei que vai acabar por compreender. E que, antes disso, vai apenas aceitar e habituar-se. E disso também não gosto. 

Nas férias em que ele tinha dois anos e meio, adorava correr e já dava ares de desafiar, tivemos de o informar que estava de castigo porque desobedeceu aos pais depois deles terem insistido várias vezes para que não fizesse determinada coisa. Não me recordo bem da desobediência (julgo que estaria relacionada com a correria e a possibilidade de ir parar à estrada, junto de carros) nem do castigo (possivelmente não terá sido mais do que ir para a cama mal chegou a casa).  No dia a seguir, quando entrou no carro, comentou: "Agora vamos para casa, eu vou ficar de castigo e depois vou dormir". Ninguém o tinha posto de castigo, ninguém lhe tinha falado nisso. Percebi - e assustei-me muito com isso - a facilidade com que as crianças podem habituar-se a coisas más. Para ele o castigo tinha-se tornado parte da rotina. De um dia para o outro. Aterrorizei-me ao pensar que uma criança assim pequena vítimas de maus tratos possa simplesmente habituar-se, achar que apenas faz parte da rotina. 

Por isso é que não gosto de coisas a que ele tenha apenas de aceitar e habituar-se, sem perceber por que não pode sentir a emoção de ouvir o último toque e correr para o portão, tentar descobrir a mãe do outro lado da rede, dar-lhe a mão e ir embora para casa ao mesmo tempo do que a maior parte dos outros. 

1 comentário:

  1. Oh...minha querida...vai correr melhor e ele aos poucos vai-se habituar e fazer novos amigos. Só acho estranho mais nenhum menino da escola estava lá para ele brincar? Não se percebe como tanto tempo não percebem que a criança está sozinha...enfim. Lá por casa o mais velho foi para o 5º ano e curiosamente ontem aconteceu-lhe algo semelhante ao teu pequeno. Teve 2 furos (não tem ainda professores) e todos os colegas e amigos ligaram dos seus telem e alguém os foi buscar. O meu ficou lá a deambular 2 horas sem aulas e não se lembrou de ir ao PBX pedir para ligarem para a mãe....enfim com o tempo a rotina e o que fazer começam a fazer sentido.

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