O senhor Pina

Eu voltei a ter vontade de ler e o meu filho aguentou as frases longas cheio de curiosidade, sempre com vontade que lhe lesse mais, que lesse tudo, até ao fim, mesmo a cair de sono. Agora trata o Manuel António Pina por senhor Pina, descobriu a imaginação e a consciência. "Eu digo uma coisa e o meu cérebro repete. Ó experimenta".

Foi a melhor prenda dos últimos anos. Não ma deram a mim, foi ao meu filho. Coisa tão simples, um livro, para crianças, que comecei a ler em voz alta num dia em que estava constipada, num esforço tremendo para fazer as vozes, manter o ritmo e o tom certos, com a entoação necessária para que tudo se percebesse. Quando se lê em voz alta não se pode voltar atrás, reler, perceber melhor, ainda por cima quando se lê para uma criança, ao mínimo deslize ela distrai-se, ou começa a fazer muitas perguntas.

Valeram-me talvez todos os anos em que li muito, mesmo agora que quase deixei de ler, não sei bem por quê. Quer dizer, sei: fui mãe, tenho mil e uma tarefas por dia, quando a criança não está acordada eu tento dormir também, falta-me tempo livre, acontece, não serei a única. Faltou-me o tempo, a vontade, ou talvez me tenha faltado o livro certo. Porque este só o queria ler mais e mais, só queria que todos os livros fossem assim, há tanto tempo que não lia.

Chama-se "O Senhor Pina", o livro, foi escrito pelo Álvaro Magalhães, e editado em setembro de 2013, já depois da morte do Manuel António Pina. Conta a história dele, mas só um pouco, que o livro é pequeno e o Pina era tudo muito, muito escritor, muito imaginativo, muito pensador, muito portuense, muito inspirador. 

A história é para crianças e o meu filho está habituado a que lhe contemos uma história todas as noites, antes de se deitar. Mas foram sempre coisas mais simples, frases curtas, ideias mais ou menos feitas, o básico. Aquele livro não, exigia leitura atenta, não podia lê-lo a pensar noutra coisa, tinha de me concentrar para fazer as vozes, até misturava sorrisos e risos à medida que lia - não para forçar nada, apensa porque me estava mesmo a diverti. Talvez tenha sido o momento alto da minha inexistente arte expressiva e teatral, aquela leitura.

Até posso ter usado o tom perfeito, mas o mérito não foi meu, só pode ter sido dos dois, do Álvaro e do Pina. Lê-se o livro e está-se mesmo a ver o Pina aqui e ali, no Porto, no Convívio, na rotunda da Boavista, sempre atrasado, sempre à volta com as palavras. O miúdo entusiasmava-se a reconhecer os sítios do Porto que já conhece bem, ria-se, sorria, queria sempre saber mais. Aguentou as frases longas cheio de curiosidade, sempre com vontade que lhe lesse mais, que lesse tudo, até ao fim, mesmo a cair de sono. Agora trata o Manuel António Pina por "senhor Pina" e descobriu a imaginação. Ou começou a ter consciência dela.

Uns tempos depois de acabarmos o livro, ao jantar, informou-me: "Sabes, eu digo uma coisa e o meu cérebro imita-me". E dizia a coisa e ficava calado, com o olhar de quem estava silenciosamente a repetir para si mesmo o que tinha dito em voz alta. Como se fossemos nós que o comandássemos e não o contrário. Às tantas é. "Eu digo e ele repete. Ó experimenta".

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