As crianças devem ter tempo para não fazer nada

A Mãe que Capotou lançou mais um dos seus célebres Sensus Capotansus, desta vez sobre se as nossas crianças ainda têm tempo para ser crianças. A iniciativa é célebre porque gera sempre uma acesa troca de experiências e opiniões entre mães e um dos meus preferidos é aquele em que ela pergunta Quando é que perceberam REALMENTE que tinham capotado.

Capotar, aqui, é sinónimo de admitir que criar os nossos filhos é bastante mais complicado do que nos explicaram que ia ser. Que é difícil, que às vezes ficamos capazes de nos atirar (de os atirar?) pela janela. A maternidade como a insustentável leveza de um martelo pneumático é outra das minhas prosas de eleição: "Muito pouco na nossa educação nos tinha preparado para as "maravilhas" da maternidade e, compreendemos agora,  deveriamos ter desconfiado do poder do instinto e da artificialidade das teorias pedo-psicológicas. [...] Sabiamos muito bem que rumo queriamos para a nossa carreira, para as nossas férias e para as nossas sextas-feiras à noite, não faziamos ideia de como se devia grelhar um bife, lavar o chão da cozinha ou passar camisas, bébés então, à parte o Nenuco, não estavamos a ver muito bem para o que é que serviam".

Mas, voltando ao Sensus do momento, a mãe capotada quis o meu contributo. Eu dei. Mas o que devia ser um comentário foi, afinal, um testamento. Não satisfeita, deixo-o também aqui, porque como diz a Sílvia Silva no raparigascomonós.com, as redes sociais são bem mais efémeras do que os blogues (quem se atreve a fazer pesquisas na cronologia do Facebook?) e há assuntos que merecem ficar para a história.

O meu rapaz de três anos quase quatro passou este ano para um jardim de infância público. A entrada é às 9h e a saída às 15h45/16h, se entrar mais cedo ou sair mais tarde paga (sim, é um estabelecimento de ensino público). Ele chega às 9h e o pai, que está desempregado, vai buscá-lo às 16h. Até agora (desde os 4 meses até junho deste ano) ele entrava no infantário privado às 9h30 e saia às 17h30, 18h, 18h30, dependendo das horas a que eu conseguisse sair do trabalho. Depois era, muitas vezes, chegar a casa, adiantar o jantar, dar banho, "sim, a mãe já vai brincar contigo mas agora tem de acabar isto", jantar, "já vamos brincar, falta só arrumar a cozinha", atirar-me para o sofá extenuada, fazer de conta que brinco com os legos, os carros e as ferramentas, jogar às escondidas e à bola quando só me apetecia não fazer nada e esperar pela hora dele adormecer para eu tratar da roupa e desabar em cima da minha cama.

Agora ele tem mais tempo para brincar. Eu não tenho tanto tempo assim para brincar com ele porque ando na fisioterapia e só chego a casa às 18h30/19h. Quando esta saga acabar, sim, teremos mais tempo para passeios no parque, brincadeiras ao ar livre, corridas, jogos de bola, etc, etc, etc. Ups, esqueci-me de que estou em Portugal, no Porto, e que parques e espaços ao ar livre é coisa que escasseia. A não ser que nos queiramos meter no trânsito do fim da tarde e afogar-nos em nervos (anda tudo muito nervoso, por aqui). 

Se ele está hoje uma criança muito diferente do que quando passava mais horas na escola... não sei. Acho que não. Se eu prefiro que ele saia da escola mais cedo, prefiro. Se isto é solução no caso do pai arranjar emprego (ah ah ah, empregos, pois sim), não é.

Quanto ao facto de os alunos portugueses trabalharem mais do que um adulto, a explicação é simples: os pais deixam as crianças nas escolas antes de irem para o trabalho e vão buscá-las depois de sairem do trabalho, a maior parte das vezes tarde e a más horas. Contas feitas: os pais saem mais cedo do trabalho do que os filhos saem da escola, se não tiverem avós ou tios ou primos para os ir buscar.

O tempo que eles passam na escola depende, também, de estarem na escola pública ou na privada. Na pública, tanto quanto sei, o "prolongamento" de horário depois das aulas (que pode ou não ter atividades como inglês ou música) só vai até às 18h30. No privado pode ir mais longe. 

Acresce que nos últimos anos (décadas) se instalou a ideia de que os nossos meninos têm de ser muito estimulados, ter muitas atividades, têm de ser os melhores, os mais cultos, prepará-los para a faculdade tem de começar no berço. Por isso, não falta quem passe os fins de tarde a levá-los e buscá-los ao conservatório de música, à natação, ao ballet, ao judo, ao futebol e sabe-se lá mais o quê. Nada contra. Pelo contrário, tudo a favor. Eu não tive nada disso e gostava de poder oferecer algo mais ao meu filho. Acontece que não posso, não tenho dinheiro. Mas não estou aflita com isso.

Uma vez falei com o pedopsiquiatra Eduardo Sá que me disse o seguinte: “Trabalho demais faz mal à aprendizagem e recreio de menos também" e "Mais escola não é melhor escola” porque “uma hora de qualidade com os pais é melhor para o crescimento das crianças do que a melhor das escolas”. Um especialista em Antropologia da Educação explicou-me que os tradicionais trabalhos de casa, "vão ocupar a criança num tempo em que ela devia não ter nada para fazer, para que encontre maneiras de se ocupar e não ter horror ao vazio". Isto será importante pela vida fora, porque "estes momentos existem e todos temos de ser educados para lidar com isto”.

1 comentário:

  1. Mais uma vez, como eu concordo contigo.
    Sou técnica superior de educação e os novos paradigmas educativos passam por isso mesmo - acabar com a escolarização dos tempos livres das crianças, caso contrário, não se poderiam designar de "tempos livres".

    Beijinhos
    Rute

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