Já vou lá ter...


Caem-me gotas de suor da testa. Ter franja não é fácil, nestes dias de calor. A imagem não é bonita mas é assim que estou, antes das 9h da manhã. Acordei às 5h30. Deve ter sido mais cedo. Aquela foi a hora que os meus olhos ainda desfocados fixaram quando decidi olhar para o relógio, não fora o alarme das 7h dar sinal e eu o tivesse ouvido sem ter ouvido. Afinal não, tinha ainda mais de uma hora de sono pela frente, que bom, mas por mais que fechasse os olhos não dormia.

Demasiado calor, pensei. Abri janelas e persianas, bebi água, fumei um cigarro, já que estava junto à máquina de lavar estendi a roupa. Estava quente. Lavei com água fria, iniciei a lavagem antes de me deitar e estava quente, a roupa. 

Grande doida, a estender roupa antes das 6h da manhã quando podia estar a dormir. Nem sequer estava com grandes preocupações. Ou aflições. Ou angústias. Simplesmente despertei e não consegui voltar a dormir. 

É do calor. E da idade. Não é que esteja velha, mas, caramba, já fui capaz de dormir até às duas da tarde. Ia para a cama bem mais tarde, é certo, mas mesmo quando me deitava cedo nunca acordava antes do despertador tocar. Quando a minha avó comentava os seus despertares madrugadores. eu achava que nunca ia ser assim. Pois. Nem precisei de chegar aos calcanhares da idade dela para saber que afinal a vida dá mesmo muitas voltas.

Estendi a roupa, fumei o cigarro, abri as janelas e voltei para a cama. Nada. Levantei-me, tomei o pequeno almoço, comecei a pintar as caixas de cartão onde quero guardar os livros e o material escolar do primeiro ano de escola do meu filho. Não sei o que é pior, se começar a manhã a estender roupa e a pintar caixas de cartão. 

Cheguei agora ao trabalho, mais cedo do que num dia de semana. A franja já deve estar num desalinho, o resto do cabelo também, ainda bem que me dei ao trabalho de o secar e de lhe passar a prancha (de alisamento) para ficar direitinho. 

Já tomava outro banho, já vestia outra roupa. E vou-me descalçar, porque - malditos pés (o problema só pode ser dos meus pés) - ontem estava tanto calor que consegui fazer duas bolhas valentes apesar de estar a usar numas sandálias de pele molinha, larguinha, o topo do conforto. 

Ontem experimentei todas as outras sandálias que tenho em casa, mas, raios, nenhuma passa ao lado da bolha que ficou em pior estado. Faziam-me falta as sandálias havaianas, é só enfiar o dedo e puxar a parte de trás no calcanhar, mais valia ter vindo de chinelos, pelo menos não me doía nada.

As sandálias havaianas não as trouxe porque não as tenho cá, foram encaminhadas para a praia onde já devia estar praticamente a chegar, não fosse terem-me atropelado o carro numa rotunda. Achei-as (ou meteram-me na cabeça que eram)  demasiado informais para trabalhar. Acontece que é domingo, não vou a nenhuma festa, e não há nada que pague o sacrifício de andar com os pés enfiados em algo que magoe (todas as queixas possíveis e imaginárias aqui e aqui).

Ainda cobri a bolha, ou o que resta dela, com dois pensos e um adesivo maravilhosamente discreto que nunca descola. Pois: descolou tudo, não tinha sequer chegado a meio do caminho. Antes disso já me tinha apercebido de que não trazia os talheres do almoço, mas estava tanto calor que não consegui voltar para trás, 

Tem sido uma cruzada, o meu percurso trabalho-casa desde que me atropelaram o carro na rotunda. A culpa não foi minha, isso foi mais do que evidente. E, ainda assim, mais de uma semana depois, continuo sem o carro, sem ordem para o reparar e sem carro de substituição. Venho trabalhar de metro, não tenho problema nenhum com isso, mas o percurso que tenho de fazer para chegar até ele, e o outro tanto que caminho depois de dele sair demora mais do que o trajeto rápido e tranquilo nessa maravilha dos transportes públicos.

O meu corpo deve estar, por esta altura, bem mais tonificado do que no início da semana, mas tudo isto começa a ser cansativo. Hoje já tive de besuntar as pernas com um creme para pernas cansadas. Apesar de ter dormido tão bem que até acordei duas horas antes do necessário, tenho as pernas moídas e vou maçá-las ainda mais no regresso, quase no pico do sol e do calor, espero bem que a bolha não me aflija muito, senão deixo o meu espírito de resistência de lado e vou descalça, quero lá saber, vou descalça, doem-me os pés, e depois?

Aqui na Baixa, no domingo de manhã, é que não convém. O melhor seria até vir de botas, tantos são os obstáculos no caminho: vomitado, pedaços de lima ou limão, vomitado, vidros, lixo, tudo sujo, vomitado e mais vidros, muitos, duas ou três garrafas de cerveja, das grandes. Também já percorri noites como se não houvesse amanhã, sem saber do barulho que fiz para quem estava a dormir ou do lixo que deixei para trás. Agora já não acho tanta graça.  

Até tinha pensado passar esta semana a andar a pé, antes do acidente. Mas da opção à obrigação vai uma grande distância. Eu sei que podemos tudo, resistimos a tudo, aguentamos sempre muito mais do que esperávamos. E isto nem é nada. Recorrer a transportes públicos? É que fazem centenas ou milhares ou milhões de pessoas todos os dias, so what? Nem sequer é a primeira vez que eu o faço.

Mas estou cansada. A menina mentirosa que foi contra o meu carro na rotunda deu cabo da minha paciência. E as seguradoras, e os vendedores de carros, e as oficinas. Anda meio mundo a queixar-se de outro meio e do Governo e dos políticos, e de Bruxelas e do FMI e a mim, neste momento, parecem-me bem piores (ou iguais, vá) os seguros, as oficinas e as meninas que atropelam carros na rotunda, ficam aterrorizadas de culpa, querem resolver tudo a bem logo no momento e no dia seguinte decidem ser mentirosas.

O meu filho conta-me todos os dias as aventuras das férias, eu digo que gostava de lá estar e ele responde-me, num tom de quem me quer tranquilizar, que não há drama nenhum, porque na terça-feira já vou poder fazer tudo isso. À conta de burocracias, de seguros contra todos os riscos que afinal não acautelam todas as eventualidades e de meninas mentirosas, talvez não. Talvez não possa ser na terça-feira, não sei, ninguém sabe, ninguém diz nada, eu que me safe.

P.S O título e a música escolhidos para acompanhar este post podem parecer não estar relacionados com nada do que escrevi. Se calhar não estão mesmo. Mas foi com esta música na cabeça que acordei, quase de madruagada. Os Deolinda tocam esta noite nos Aliados, for free, e acho que gostava de os ir ver, mas não sei se me apetece. Movimento perpétuo indecisivo, that' s me. Se calhar foi por isso que não dormi mais. 

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