O Inverno do Porto mudou a minha roupa

Tenho problemas com a chuva desde que vim morar para o Porto. Há invernos piores, claro, e este é um deles. Quando surge um bastante mau, lembro-me dos outros (e não me conforta). O primeiro que me fez mossa, há 14 anos, podia ter-me feito mudar de cidade, mas fez-me mudar de roupa. Era dezembro, houve uma derrocada nas Fontainhas. Eu nem sequer sabia o que isso era, nem onde ficava e aquilo quase que ruía mesmo, fios de eletricidade presos às casas, os bombeiros a cortar o que podiam para o chão não levar as casas, não sei quantos desalojados, lama, chuva, eu de sapatos, calças de tecido e canadiana (na altura chamava-lhe casaco de fazenda). Ficou tudo ensopado: ou escrevia ou segurava no guarda-chuva e, pensando bem, não sei como consegui tirar apontamentos no meio de tanta água.

Depois era preciso verificar se funcionaria o botão da festa de passagem de ano, que já não se sabia se era de milénio ou não, chuva miúdinha a noite toda e eu ainda de sapatos, calças de tecido e casaco de fazenda. Naquela noite percebi que, se queria ser jornalista no Porto, tinha de mudar de roupa. 

Houve ali algum exagero, mas foi ele que me levou a comprar um dos melhores casacos que já tive, quente e impermeável, bom para o frio e para a chuva, exatamente o que precisava. Era comprido, com carapuço, não acolchoado (maldita moda dos kispos que parecem edredões e falo mal de mim própria, atualmente tenho um: corri as lojas todas, fui à mesma onde comprei o outro e nada, nunca mais encontrei igual). Usei-o tanto, chovesse ou não, que o preto ficou cinzento, como o tempo, até ficar tão gasto que já não se podia usar.

A determinação era muita, até comprei uma carteira impermeável – a sério, era mesmo, e tinha tantos bolsinhos, tanto potencial de arrumação que não fui capaz de lhe ficar indiferente, parecia perfeita (como todas as que comprei desde então, e não, nunca são). Aproveitando o embalo, devia também ter investido numas botas, mas aí nem o inverno do Porto me convenceu. 

Não sei que raio de moda era aquela, minha, de usar sempre sapatos (a esta distância, adivinho que, com outro tipo de calçado, as calças que usava não assentavam bem, achava eu). Primeiro eram uns sapatos de pala rasos, pretos (what else?), tive várias variações. Depois, numa fase mais calças de ganga, passei para um modelo mais “sapatilha”, primeiro uns azuis (que ousadia) , depois uns em tons de rosa, que alternava de acordo com a cor das camisolas. Também tive (ainda tenho) uns vermelhos, também rasos, também no estilo sapatilha, também pouco eficazes em casos de muita chuva, mas pessoas de ideias fixas são difíceis de contrariar.

Naquele primeiro inverno mau, e no outro, naquele em que choveu de outubro a março e a ponte caiu, podia ter-me posto a milhas desta cidade chuvosa, onde a minha genética transmontana está sempre a morrer de frio, porque este é diferente, húmido e gélido, entranha-se na roupa, nos armários, cheira a mofo. 

Acontece que a chuva não me incomodava. Caramba, tinha um casaco impermeável e quente, giro como nunca mais encontrei nenhum, todos os dias descobria coisas novas, trabalhava de chuva a chuva e depois…. havia aquela luz, a do céu do Porto, com sol, quando se desce a avenida da Boavista em direção ao mar, foi ela que me fez sentir em casa pela primeira vez.

As primeiras botas a sério que comprei no Porto (as primeiras mesmo é melhor esquecer, eram ligeiramente pontiagudas, usava-as com as tais calças de tecido – que raio de mania –, davam-me um ar “senhora” mas passou-me depressa) coincidiram com o início da minha fase “vestidos”. Com “a sério” quero dizer de cano alto e pele (outros tempos), quem usa vestidos no inverno do Porto precisa de proteção nas pernas. 

Entretanto, o tempo, cronologicamente falando, tornou-me mais exigente. Mudei de estilo, passei a precisar de botas a sério (mas já não de pele a sério) também com calças (já não de tecido, pelo menos não naquele tecido). No ano passado, comprei umas galochas. Nunca me tinha passado pela cabeça, achava-as uma coisa de borracha feita, desconfortável, com tudo para deixar os pés gelados. Mas estava na loja a acompanhar alguém que ia realmente comprar alguma coisa, elas olharam para mim, tão cor-de-rosa, que tive de as experimentar. Foi a primeira vez que gostei de me ver com botas por fora das calças, eram tão giras e leves e rosa, trouxe-as, foram companhia quase diária, distingui-as como uma das melhores compras de sempre.

Este ano já não as acho confortáveis, atrapalham-me a condução, o andar também não é dos melhores, e não tapam a chuva toda, que tem chovido mesmo a sério. Não sei se é deste inverno, se é de mim, fiquei tão mais friorenta e vulnerável à chuva que não sei onde irei parar. Até comprei, logo no verão, umas botas de cano alto de feltro até ao joelho, tão quentes e impermeáveis que me convenceram como nenhumas outras (as mais recentes são sempre as melhores). 

Acontece (acontece sempre qualquer coisa) que se revelaram menos bonitas e elegantes do que pareciam. Dizem-me que só umas galochas de pescador me podem salvar. Brincam com as minhas cautelas com o tempo (metereologicamente falando) e eu bem gostava de voltar a usar sapatos ou sapatilhas no inverno, porque, agora sim, está na moda e desta eu gosto. 

Mas se chove, se dizem que vai chover, se parece ameaçar chover, se há alertas de ondas e ventos e chuvas, já não consigo. E, por isso, fico-me em relação às botas como em relação às carteiras: tenho muitas, mas nenhuma serve, as que ainda não comprei são sempre as que me fazem falta, maldita chuva.

Este texto da Divine Shape foi publicado no site Porto 24, e também pode ser lido aqui


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