O dia em que as calças se rasgaram ou o início de uma revolução

Não me lembro se me aconteceu alguma vez em criança, mas também não me lembro de ver fotografias minhas com calças quando era mesmo mesmo pequenina, essa é que é a verdade. Tiravam-me fotografias com vestidinhos muito bonitos, às florzinhas, tiravam-se fotografias aos domingos e nos dias festivos, quando se vestiam as melhores roupas, e no meu tempo as calças de ganga não estavam incluídas no lote. Do meu irmão lembro-me de umas calças de um xadrês grosso, com joelheiras, uma coisa horrenda mas que se calhar ainda existe, não sei se já chegaram a casa feitas assim ou se as ditas serviam para cobrir algum rasgão.

Pois hoje as calças de ganga rasgaram-se-me. A primeira vez que me tinha acontecido foi no joelho, há uns dois anos, e havia justificação: sempre que tinha de vestir o meu filho ajoelhava-me, elas acabaram por ceder no joelho que se ajoelhava mais. Hoje não, não há justificação a não ser o uso que dei às calças. Ao vesti-las puxei-as por uma presilha do cinto e crás. Não faz mal, nem vou mexer, não ponho cinto para não piorar, deixa estar que eu de costureira tenho muito pouco. Depois, no trabalho, nem tive tempo de chegar com o rabo ao sofá: baixei-me ligeiramente e zás, grande rasgão junto ao bolso de trás. 

Noutros tempos até teria ficado preocupada com um eventual e súbito engordamento (nunca ninguém usa esta palavra, pois não?), mas hoje percebi que as calças estão mesmo velhas, que as usei até rasgar, coisa que é rara mas que significa alguma coisa na minha vida, sobretudo no dia em que ouço e leio Portugal a delirar com uma vitória futebolística, como se o futebol nos fosse salvar de um país que se afunda, como se a alegria desta e de futuras putativas vitórias pudessem abafar o que muitas pessoas estão a passar, e não, não estou mesmo a falar de mim que rasguei hoje umas calças por causa do uso. O que é triste é que este país se deixou abafar mesmo por uma bola que entrou na baliza por um jogador que dizem que é o melhor do mundo e é português, e é um orgulho, não percebo como podes não estar de queixo caído com aquela fabulosa vitória, estamos no Mundial, carago.

Com muita pena minha, este país está hoje ainda no país do Fado, Futebol e Fátima, com uns a vibrar com o futebol e outros sem comida para por na mesa sem se queixarem muito, somos um povo sereno, pá, não podemos andar por aí a contestar, pá, temos mas é de ver o futebol, é o nosso país, pá, estás armada em quê? Em nada, devia mas é ir para a rua gritar, mesmo com as calças rasgadas, que se lixem as calças e o que se vê por baixo, pelo menos vê-se a verdade, não há nada a esconder coisa nenhuma.