Irreal social (ou vice-versa)

Não fui ao cemitério porque me recuso ir ao cemitário no dia em que é "obrigatório" lá ir. E porque sempre que lá vou percebo que não estou lá a fazer nada. Que a memória, o amor, a homenagem faço-a todos os dias, sem estar ali. No meu canto, cá dentro, sem ninguém a passar e a ver que o faço. Pois o cemitério acabou por vir até mim, nas imagens de uma reportagem de um dos jornais da noite. Fiquei congelada, ainda pensei que te ia ver, mas não, a câmara não passou por ali. Ainda assim atirei-te um beijo, pai.
 
Precisava de sacos para o aspirador, tive de ir ao shopping. Podia ter-me ficado por ali, mas era hora de almoço (por aqui acordamos cedo, mas arrastamo-nos em pijama durante umas horas) e fiquei (ficámos) logo ali. Corredores quase vazios. É a crise, pensei. Qual quê. Praça da alimentação cheia até à rolha, safamo-nos com meia sopa e um hamburguer e enquanto isso percebi que isto da crise realmente ainda não toca a todos. O shopping era, esta manhã, um reflexo social nacional com o qual ainda não me tinha cruzado. De um lado, pessoas sem sacos, ou com sacos do supermercado. Do outro, pessoas com muitos, mesmo muitos, sacos de compras de lojas de roupa (caras). E é assim que se divide a sociedade portuguesa neste momento: entre os que não têm dinheiro e os que têm. Já não temos todos, uns mais do que outros. Uns simplesmente não têm. Outros continuam pela vida e pelo sobressalto que o país têm levado como se nada fosse. E para esses, está tudo bem, não há cá ameaças de assalto fiscal que os assuste. Os manifestantes que têm saído às ruas deve-lhes parecer aliens de um país que não é o deles. Isto partindo do princípio (que pode estar errado) de que vêm e lêm notícias. Sim, porque  - partindo para algo completamente diferente - os trabalhadores da CP estão em greve nos feriados há meses, e de todas as vezes vejo reportagens de pessoas que não, não sabiam que ia haver greve. Andam a fazer o quê, então, a ver a Gabriela?
 
Percebi, enquanto estava sentada em frente ao hamburguer, que durante anos o hobby dos portugueses foi fazer compras. Quando não havia nada para fazer, ia-se passear no shopping, ia-se às compras. Em vez de ir ao teatro, ao cinema, de ler um livro, de passear ao ar livre, de pensar na vida, debatê-la, falar de outra coisa que não fosse o futebol ou o Big Brother. Entre a gente que passa por mim, percebe-se que para alguns continua a ser assim. A roupa é desta estação, as botas (agora tudo tem brilhantes ou apliques metálicos?) estão ainda a ser estreadas, trazem os braços cheios de sacos.
 
Eu própria tenho de fazer um mea culpa. Sem andar à procura de nada, passei por um casaco amarelo que ia ficar a matar no meu guarda-roupa monocromático e por um cachecol-gola azul petróleo que, noutros tempos, teriam vindo comigo para casa.
 
Enquanto isso, no país estuda-se uma reforma na despesa do Estado, que pelo que tem sido dito só pode resultar no fim do Estado Social. Era bom que jornais e televisões explicassem claramente o que isso significa (como fazia o Dr. House português, nas suas consultas por videoconferência aos habitantes da terra onde nasceu, num exemplo notável de altruísmo). Explique-se claramente o que está em causa. Aos que não estão atentos porque andam nas compras e pensam que nada do que vem por aí os vai afetar. E aos que ouvem e não percebem, porque cresceram num tempo em que não sei ia à escola, um tempo que é precisamente aquele para onde caminhamos.
 
Paz, pão, habitação, saúde, educação. É isto que está em causa. Mesmo para quem não gosta da música ou das conotações políticas que lhe podem ser atribuídas, é isto o Estado Social e é isso que corre o risco de acabar. Tal como o dinheiro que todos os que trabalham descontaram até hoje para a segurança social.
 
Pagamos, vamos pagar ainda mais e cada vez mais, e o Estado não vai dar nada em troca. Nem o que é nosso, porque o pagamos todos os meses. Não vai haver dinheiro para reformas. Para os hospitais. Para as escolas. Vai faltar educação, vão fechar escolas, as crianças das aldeias voltarão a ficar entregues a si próprias ou ao esforço de se levantarem de noite para o autocarro os levar à escola na cidade, como acontecia com muitos colegas meus na escola secundária. Ao menos iam, não era. Pois, era. Mas quando chegavam a casa, ou nos fins de semana, iam ajudar os pais a tratar das cabras e do gado. E quando chegavam à escola vinham sempre muito mais cansados do que os que moravam na cidade.
 
Sem Estado Social, o lema será "ou tens dinheiro ou ficas burro e ignorante, a não ser que os teus pais aproveitem a formação escolar que tiveram no tempo das vacas gordas" porque, ao menos isso, os pais de hoje são, na sua maioria, os da geração portuguesa mais letrada e formada de sempre. 
 
Vai faltar o pão porque muitos não terão dinheiro para ele. E a saúde, porque ou tens um seguro ou pagas mais caro no público (muitos talvez não se tenham apercebido, mas já é assim agora, hoje, este ano). E porque sem dinheiro nem no público nem no privado, não vais ao médico e pronto. Então se estiveres longe do Porto, Coimbra e Lisboa, esquece.

E assim, aos poucos, já nem sequer vai ser preciso pagar as reformas que ainda houver para pagar durante muito tempo, porque as pessoas vão morrer mais cedo. Resta saber quantas chegam vivas à idade de reforma cada vez mais alargada. Contradição parva, esta: aumenta-se a idade da reforma porque a esperança de vida das populações é maior, e depois tira-se-lhes tudo. Sem pão e saúde, não tarda que a esperança de vida começe a diminuir. Bebés? Sem pão, saúde, educação? Vão ser cada vez menos e em Portugal já são muito poucos. Genocídio?
 
P.S Não gosto da música que dá título a este post, mas foi o que me veio à cabeça como mais adequado para ele. Para este dia. Sobretudo a parte do irreal.

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