Dormir não é o mesmo que adormecer...

Lembro-me de ser miúda e de gostar de beber chá e bolachas na sala contigo, depois do jantar, um montão enorme de jornais de edições passadas junto à lareira, o jornal do dia na mesa à tua frente. A televisão a dar o telejornal, não recordo grandes conversas porque foste sempre de poucas falas, saías de manhã cedo, vinhas almoçar, passavas os olhos no jornal que à noite voltavas a ler, saías outra vez, trabalho, voltavas, banho, jantar, um bocadinho na sala e depois cama. Mas eu gostava do ritual do chá e das bolachas contigo e com a tia. 

Lembro-me, ainda antes disso, na outra casa, a primeira, de ter entalado um dedo da mão direita (foi o dedo médico, ficou um nadinha deformado, ainda hoje se nota, sabes?) na porta da entrada por ter ido a correr atrás de ti quando saías de casa para o trabalho depois do almoço. Não sei o que te queria, disso já não sei e também não tenho a certeza de que estivesses na sala quando decidi baloiçar-me com uma mão num móvel e outra na cadeira e ela virou, e eu caí, queixo no chão, toca a ir para o hospital levar pontos.

Sei que me lembro de ti sentado, imponente, imperturbável, austero sem ser rude, praticamente sem falar ou precisamente por pouco falares, o trabalho, sempre o trabalho, toda a semana, de madrugada até à noite, na cama quase com as galinhas, amanhecer também com elas, como se ali as houvesse, ao fim de semana a mesma coisa, nas férias também. Tinhas tudo, criaste um mundo e quase não saías de casa, a não ser para o café e para o futebol, não viajavas, não passeavas, não fazias férias mesmo a sério, que impressão isso me fazia, eu cresci noutro mundo, havia de tudo, nada faltava, os ganhos e proveitos deviam ser para gastar, para ficarmos por nossa conta, para descansarmos, conhecer o mundo, passear, ir, aproveitar. Tu não, começaste a trabalhar cedo, chegaste a ir para Espanha a pé ou de bicicleta e nem sequer moravas na fronteira, aprendeste a assentar tijolos por ver como os outros faziam, não, já sei, foi a fazer um arco: não quiseste dar parte de fraco e dizer ao encarregado que nunca tinhas feito arcos daqueles, disseste que ias beber água e foste estudar como tinham feito os outros no piso de baixo, replicaste tudo direitinho ou ainda melhor, o homem ficou impressionado. 

Trilhaste o caminho do pinhal até à praia e à linha do caminho-de-ferro, fizeste ruas e avenidas, chateaste-te com o homem (da GNR, das Estradas?), chamaste-lhe camelo, foste a tribunal, disseste ao juiz que não foi nada disso. "Eu disse é que andámos nós ali a trabalhar como camelos para destruírem tudo".  Safaste-te, na obra da marginal foste outra vez artista, disseste ao outro concorrente que aquilo não te interessava, que era muito difícil, ele subiu o preço e tu baixaste-o, ganhaste o concurso, foi assim, não foi? Tanto me cansei de te ouvir repetir estas histórias tantas e tantas vezes sem conta e afinal não foi suficiente, não fixei tudo, fui parva, devia ter estado mais atenta. Coisas de adolescentes, sabes, achamos que o mundo gira à nossa volta e que vamos tomar conta dele quando chegarmos aos 18, não sabemos é de coisa nenhuma. 

Sempre foste pouco de beijos e abraços mas quanto te comecei a aparecer em casa com um homem com quem não era casada tu acolheste-o de braços abertos, gostaste dele, sempre o trataste bem, quando lá ia sem ele perguntavas onde estava. Depois, prova suprema, um dia tive de te entrar pela casa adentro para te dizer que estava grávida (que não estava casada já tu sabias). E disse, alto para ouvires bem. Estou grávida e vai-se chamar J. É um rapaz? É. Como se vai chamar? J. Escolhemos o nome agora, em cima da ponte que temos de atravessar para vir cá ter. E ele, o miúdo, foi até há uns dias o J. da ponte de Viana. Ontem já só perguntaste quem ele era, hoje ele já não foi e não quiseste saber onde estava. 

Sentado, a resmungar com o futebol e a política, mais ou menos austero, sempre foste um sol. Uma força da natureza. Que trabalhou até depois dos 90, durante 76 anos, se não me engano, 76 anos seguidos, sem grandes pausas, já tinhas uma idade jeitosa quando caíste de um prédio, o médico assustou-te mas tu quiseste foi ir para casa e ficaste como novo, perdeste alguns filhos quando eles eram pequenos, antes não havia esta medicina toda, depois perdeste o meu pai e avó e permaneceste bem de pé, com a força toda. Agora caíste outra vez, foi o tapete, ou os pés, não se sabe. Valente susto, a operação correu bem mas não estás a gostar mesmo nada de ter de estar sempre sentado ou deitado, a perna ainda não está boa, tens de fazer o que o médico disse, ninguém gosta de fazer o que o médico diz, os médicos são os chatos, mas tu já fintaste uns quantos. 

Noventa e oito anos de vida, andas aos trambolhões e resistes, anestesia geral, os ossos estão uma maravilha, tudo no sítio outra vez, agora tens é de ir com calminha. Passaste de avô austero a avô muito querido, meigo e agradecido, reconhecido de cada vez que te íamos fazer uma visita e fomos muitas, que de cada vez que ia ficava a gostar mais de ti. Por isso é que hoje, muito mais do que há dez anos ou mais, te digo que me vais fazer muita falta. És a única pessoa próxima de mim que estou a ver envelhecer. Os outros não tiveram tempo, foram cedo demais. E eu não sei o que custa mais. Só sei que não quero que vás e nem sequer estou a falar de morreres. Sinto-te distante, a esquecer-nos, a ter falta de forças para saber o nome de todos, e somos mesmo muitos, a deixares de ter vontade de te lembrar, olhas como se fossemos pessoas estranhas mas já nem perguntas quem somos, e eu não quero que vás porque és uma força da natureza, és um sol, uma luz sentada e quieta a irradiar tudo o que foste e que aprendeste. Para ter sorte na vida é preciso procurá-la. Sinto-te perdido e triste, não quero que te sintas assim, ainda hás-de chamar ao J. outra vez o J. da ponte de Viana, ou não? Ontem estavas tão desconfortável que me disseste que só querias adormecer. Dormir não, eu sei lá, não sei, que depois vou para a cama e não durmo. Dormir não é o mesmo do que adormecer, pois não? 

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