Charlie, abono, escola pública e a liberdade das mulheres


Parece que hoje somos todos Charlie, por causa do atentado em Paris na redação do semanário Charlie Hebdo, mas o que eu vejo quase todos os dias são atentadas à liberdade de imprensa, e à liberdade em geral, à igualdade e à fraternidade. Ontem, no meio tiroteio, quase que perdia a notícia de que o Governo decidiu cortar o abono de família a quem tiver rendimentos brutos mensais superiores a 628 euros. Há quem ganhe menos? Há. Muito menos? Sim. Mas 628 euros brutos não é nada, é uma migalha, sobretudo para quem tem filhos. 

Fico tentada a concordar com a crónica do Ricardo Santos no Aventar e dizer que "Somos todos merda nenhuma". Porque no dia-a-dia calamos e só quando nos toca de longe ou de forma tão abrangente que só pode ser consensual, ficamos todos do mesmo lado. Como ele diz, "Acho, muito sinceramente, que o “somos todos” é uma forma de nos sentirmos confortáveis com a coragem dos outros – ao longe, pois claro -, uma projeção do que gostávamos de ser mas que ainda não temos coragem. Sinceramente, não sei o que falta mais. Como lia um dia destes no facebook de um amigo, para ficarmos pior, só se nos despentearem".

Na escola do meu filho, está frio no refeitório e o miúdo constipou-se. Foi ele que disse, que "estava muito frio". Os miúdos comem por turnos, ainda não consegui desvendar quantos. Pela quantidade de alunos da escola do primeiro ciclo, presumo que sejam quatro. Pelo que todos têm de se despachar, o tempo é limitado, há que dá de comer a todos, mas quem não comer não come, tivesse comido, há que dar vez a outros, ou então não há mais nada para ninguém porque está na hora de regressar à sala.

Também faltam funcionários e já perdi a conta às vezes em que a responsável do ATL se queixa de se ver grega para gerir tantas crianças, nas quais se incluem três com necessidades educativas especiais. Ontem contou-me que no dia anterior quase chorou, quando um miúdo fugiu para o recreio e ela, sozinha, não pode ir atrás dele porque tinha na sala os meninos com necessidades especiais, que tem de estar sempre a impedir que façam o mesmo. Isto tudo numa escola onde, a partir das 17h30, não há porteiro e qualquer um consegue abrir a porta - por fora, e por dentro. 

E disto, ninguém quer saber? É no Porto, tem nas instalações um jardim de infância e, no recreio, zero entretenimentos para as crianças mais novas, que não se podem misturar com os da escola mas misturam. E depois apanham, ficam sem cartas que era suposto trocarem. Nem um baloiçozinho, apenas balizas na área que não podem atravessar. Por isso brincam às lutas, a atirar terra e paus das árvores uns aos outros. Ou a rasgar os kispos no arame que separa a escola do pátio de acesso à rua. Os da escola básica não estão muito melhor. Por razões que a razão desconhece, parece que só podem jogar à bola no recreio dois dias da semana.

Se penso que podia ter sido na minha redação? Penso. Que podia ter sido na redação onde trabalham alguns dos meus amigos? Penso. Mas também penso no silêncio de tanta gente em relação a tanta coisa que está errada, que revolta, que magoa, pode não ser uma chacina mas não deixa de ser um atentado. 

No meio disto tudo, lembro-me do que li há dias no El Diario, através de Silvia Federici, professora na Universidade de Hofstra em Nova Yorque: "É um engano que o trabalho assalariado tenha servido para libertar as mulheres, nomeadamente porque, agora, as mulheres têm dois trabalhos e ainda menos tempo para, por exemplo, lutar ou participar em movimentos políticos ou sociais".

Eu concordo: Trabalhamos, somos supostamente mais realizadas e independentes, mas sobretudo quando os filhos nascem, chegamos a casa e fazemos tudo o que faziam as domésticas, só que em menos tempo e menor vontade. Sim, eu chego a casa e continuo a trabalhar. Apanhar roupa do estendal, dobrar roupa, ajudar o miúdo a fazer os deveres, fazer o jantar, organizar as coisas para o dia seguinte. Por vezes, ao mesmo tempo, atendo e faço telefonemas do trabalho - do tal que, na verdade, não liberta as mulheres.

E hoje, encontro esta crónica da Ruth Manus, que em português do Brasil, em com as especificidades própria do país onde vive, nos fala de uma geração de meninos e  meninas educada de forma diferente, mas não o suficiente para que tudo encaixe quando chega a fase adulta. 

O título do texto é "A incrível geração de mulheres que foi criada para ser tudo o que um homem não quer" e deixo aqui alguns excertos, 


- "O fato é que eu venho pensando nisso. Na incrível dissonância entre a criação que nós, meninas e jovens mulheres, recebemos e a expectativa da maioria dos meninos, jovens homens, homens e velhos homens.O que nossos pais esperam de nós? O que nós esperamos de nós? E o que eles esperam de nós? Somos a geração que foi criada para ganhar o mundo. Incentivadas a estudar, trabalhar, viajar e, acima de tudo, construir a nossa independência. Os poucos bolos que fiz na vida nunca fizeram os olhos da minha mãe brilhar como as provas com notas 10. Os dias em que me arrumei de forma impecável para sair nunca estamparam no rosto do meu pai um sorriso orgulhoso como o que ele deu quando entrei no mestrado. Quando resolvi fazer um breve curso de noções de gastronomia meus pais acharam bacana. Mas quando resolvi fazer um breve curso de língua e civilização francesa na Sorbonne eles inflaram o peito como pombos. Não tivemos aula de corte e costura. Não nos chamaram pra trocar fralda de um priminho"

- "Exatamente como aconteceu com os meninos da nossa geração. Mas nos ensinaram esportes. Nos fizeram aprender inglês. Aprender a dirigir. Aprender a construir um bom currículo. A trabalhar sem medo e a investir nosso dinheiro. Exatamente como aconteceu com os meninos da nossa geração. Mas, escuta, alguém lembrou de avisar os tais meninos que nós seríamos assim? Que nós disputaríamos as vagas de emprego com eles? Que nós iríamos querer jantar fora, ao invés de preparar o jantar? Que nós iríamos gostar de cerveja, whisky, futebol e UFC? Que a gente não ia ter saco pra ficar dando muita satisfação? Que nós seríamos criadas para encontrar a felicidade na liberdade e o pavor na submissão?"

- "Muitas de nós sonham com filhos. Mas não só com eles. Nós queremos fazer um risoto. Mas vamos querer morrer se ganharmos um liquidificador de aniversário. Nós queremos contar como foi nosso dia. Mas não vamos admitir que alguém questione nossa rotina.O fato é: quem foi educado para nos querer? Quem é seguro o bastante para amar uma mulher que voa? Quem está disposto a nos fazer querer pousar ao seu lado no fim do dia? Quem entende que deitar no seu peito é nossa forma de pedir colo? E que às vezes nós vamos precisar do seu colo e às vezes só vamos querer companhia pra um vinho? Que somos a geração da parceria e não da dependência?"

- "E não estou aqui, num discurso inflamado, culpando os homens. Não. A culpa não é exatamente deles. É da sociedade como um todo. Da criação equivocada. Da imagem que ainda é vendida da mulher. Dos pais que criam filhas para o mundo, mas querem noras que vivam em função da família. No fim das contas a gente não é nada do que o inconsciente coletivo espera de uma mulher. E o melhor: nem queremos ser. Que fique claro, nós não vamos andar para trás. Então vai ser essa mentalidade que vai ter que andar para frente. Nós já nos abrimos pra ganhar o mundo. Agora é o mundo tem que se virar pra ganhar a gente de volta"

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