Ser diferente

O miúdo que supostamente tem as orelhas grandes (a mim parecem-me normais, a paródia feita pelo programa Ídolos, da SIC foi fazer-lhe crescer as orelhas e, se isso foi preciso, é porque as orelhas do não eram assim tão grandes) vai ser operado - às orelhas. Uma clínica qualquer ofereceu-se para isso, acabei de ler no jornal. 

Confesso que fiquei um bocadinho chocada. Como se não bastasse tudo o resto, agora há uma clínica que se aproveita do miúdo para lhe dar o que ele pensa que quer, a troco de publicidade - sim, o jornal cita o nome da clínica e até refere tratar-se de um "patrocínio". Não me lembro de alguém me ensinar, abertamente e num momento concreto, que ser diferente não faz mal nenhum. Mas com o tempo e a idade fui aprendendo que somos todos imperfeitos, que temos de aperfeiçoar o que podemos e aprender a viver e conviver pacificamente com que não tem volta a dar. 

Fico, por isso, um bocado triste que pareça ter ido por água abaixo toda a solidariedade de todos os imperfeitos que disseram ao miúdo 'não ligues, todos nós tivemos a nossa cruz quando éramos mais novos (esta crónica do Ferreira Fernandes do DN é exemplar) - se não foram as orelhas foram os óculos, ou foi porque éramos demasiado altos ou demasiado baixos, ou demasiado magros ou excessivamente gordos... Parece um paradoxo, não é? Mas tanto era alvo de chacota quem era muito baixo ou muito gordo como o seu contrário (quem é baixo e/ou gordo não imagina que tal possa acontecer até se cruzar com alguém alto e/ou magro a queixar-se de ter passado pelos mesmos olhares dos outros).

Nunca ninguém é perfeito e, quem parece estar mais próximo de uma suposta normalidade, faz sempre questão de destacar as diferenças dos outros. Para se sentir superior, ou só porque sim, não sei. Eu fazia parte dos gordos com óculos, não estava propriamente entre os mais populares da escola, nem sequer me vestia muito bem (acho que vestia basicamente o que calhava e o que a minha mãe me comprava) nem tinha o cabelo giro (tive uma fase de cabelo comprido em que usava um rabo de cavalo apertado de lado e no topo da cabeça, não sei onde fui buscar aquilo ou de que forma me convenci de que aquilo me favorecia, acho que na verdade não ligava a isso, estava só preocupada em ser do que em parecer). 

Não posso dizer que tenha tido uma existência miseravelmente triste enquanto criança ou adolescente. Fui feliz, diverti-me, tive muitos amigos, fui boa aluna, no geral consegui marimbar-me para o resto, pensar mais no meu futuro e no que queria ser do que naquilo que alegadamente estava mal com o meu corpo, numa época em que a tirania da perfeição era bem mais pesada (quais modelos XL, quais anúncios da Dove a mostrar corpos 'normais', com celulite, barriga, coxas ou rugas, eu cresci na época áurea da Barbie, a boneca de formas tão perfeitas quanto impossíveis).

Apesar de tudo, todos estes anos depois, sei que vivi (mal) com o rótulo da menina gorda. Tanto que ainda hoje, magra e a vestir 36 há dois anos, mais coisa menos coisa, acho que isto não é o meu estado normal, que está só de passagem, como se a gordura fosse uma sentença para a vida, como se fosse apenas uma gorda em recuperação - sim, isso mesmo, como se o excesso de peso fosse uma doença como o alcoolismo ou a toxicodependência, em que se contam os meses em que a balança não ultrapassa determinado número sempre com o receio de que possa voltar a passar.

Andei sempre em frente mas assimilei todas as bocas, todos os comentários, mesmo os que possam ter sido ditos sem maldade, todas as roupas que experimentei e não me serviam, todos os tamanhos maiores que tive de pedir, todas as peças de vestuário que gostava de ter tido e não pude porque era demasiado grande para elas. Ou elas demasiado pequenas para mim - mas isso é o que penso agora, na altura apenas me sentia demasiado mal. 

Andava em frente mas fazia dietas malucas e desequilibradas que apareciam recomendadas em revistas femininas. Cheguei a comer só saladas e fruta, dei cabo do estômago por causa disso, e tive de ser operada a um joelho que lesionei nos aparelhos de musculação e na ginástica - tudo coisas que fazia para emagrecer, não para me sentir bem. 

Aprendi que, apesar das marcas, nada disto ou coisa parecida impede quem quer que seja de ser um adulto bem sucedidos. Percebi também que, com o tempo, as orelhas podem deixar de parecer desproporcionais, ou podemos deixemos de ser tão altos, tão baixos, tão gordos ou tão magros. Ou que conseguimos aprender a viver pacificamente com isso tudo e muito mais. 

Andou mais de meio mundo a tentar explicar ao miúdo que as orelhas dele não tinham mal nenhum, que a SIC é que agiu mal e agora o miúdo vai mudar de orelhas. Ninguém gosta de ser alvo de chacota, e quanto mais pública ela for, pior. A paródia sobre nós e sobre o nosso corpo nunca se esquece? Não, nunca. Mas tenho sérias dúvidas que mudar seja a solução. E começo a ter a convicção de que o caminho que é preciso percorrer para nos aceitarmos só nos faz bem, só nos torna melhores, mais compreensívos, menos intolerantes.

No caso em questão, até acho que não é por mudar de orelhas que os gozadores potenciais das orelhas do miúdo vão deixar de se lembrar das orelhas supostamente grandes parodiadas na televisão. Ou que ele fez uma operação para deixar de ter supostamente grandes porque foram alvo de uma brincadeira de mau gosto. Os potenciais gozadores apenas se vão esquecer ou cansar, quando calhar. O miúdo talvez não. Talvez pense que não. Mas podia. A verdade é que, se calhar, ninguém (nem eu) devia andar a meter o nariz nas orelhas do rapaz.

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