Tenho fome de cultura




Comprei os bilhetes à maluca, porque no minuto em que foram postos à venda desapareciam como se fossem pães quentes no dia em que tinha sido determinado que nunca mais na vida teríamos pão para a boca. Escolhia os lugares, hesitava em avançar com a compra e pronto, já estava vendido. Deixei-me de coisas e comprei, há tanto tempo que já não me lembro quando foi, acho até que foi no ano passado.

Ontem, estive lá, na Casa da Música, a ver os Dead Can Dance. Foi um concerto fantástico para uma plateia fantástica, porque toda a gente se mostrou fervoroso fã dos australianos que lançaram o primeiro álbum em 1984, acabaram no fim da década de 90 e este ano editaram um novo disco, Anastasis (o primeiro desde Spiritchaser, de 1996).

Ela, Lisa Gerrard, tem uma voz que nos embala e transporta para outros mundos, lavando-nos a alma como se tivessemos tomado um banho interior. Ele, Brendan Perry, é, para mim, uma das melhores vozes masculinas do mundo da música. Ouvi-lo é mais do que uma lavagem da alma, é como se tivesse alguém a embalar-me e aconchegar-me na cama.

Cairam-me lágrimas por diversas vezes durante o concerto, assim como à rapariga que estava à minha frente, ao rapaz que estava ao meu lado e a muitas outras pessoas, acredito eu. No meu caso, algumas foram pela emoção da música. Mas muitas - grande parte, acho eu - foram pelo deslumbramento de estar a assistir a um concerto (coisa que já não fazia há uns quatro/cinco anos, por razões que não interessa algora referir).

O mundo parou, ninguém me esteve a buzinar aos ouvidos que estamos em crise, não ouvi nenhum ministro a anunciar medidas incompreensíveis e depois recuar e avançar novamente para outra coisa diferente que no fundo é exatamente a mesma coisa ou ainda pior.

Mas o concerto de ontem foi muito mais do que isso. Não foi só entretenimento, ou diversão, ou distração, ou descontração. Foi Cultura. Foi dar carburador ao cérebro e ao coração. Foi ter relembrado que a Cultura me (nos) faz falta. Que realmente ela é o alimento da nossa alma. Que se não podermos assistir a concertos, a  peças de teatro ou comprar livros, ficamos entorpecidos, emburrecidos, estupidificados, definhamos.

Ainda que pensemos e reflitamos sobre tudo o mais alguma coisa, se não tivermos Cultura temos muito pouco. E isto não é uma coisa que se resolve com saídas à noite para beber uns copos e dançar. Porque não estou a falar em relaxar, estou a falar em alimentar a alma. Sem isso, só não digo que não temos nada porque com os cortes que os nossos salários têm sofrido e vão continuar a sofrer, a necessidade primeira e absoluta é assegurar que não falta comida na mesa.

Acontece que isso não significa que não se continue com fome - de Cultura ou de outras coisas, porque  viajar, por exemplo, também é uma forma de alimentarmos a alma, de ficarmos mais cultos, mais despertos, mais preenchidos. É por isso que, em tempos de crise ou de bonança, a cultura não devia ser considerada um artigo de luxo. E é, porque aceder a ela fica caro.

2 comentários:

  1. A cultura nunca deveria ser encarada como um luxo. Muda a nossa vida, é essencial. As medidas que têm sido tomadas contra a cultura são um crime. Mas as voltas viradas de muita gente também não são menos do que cumplicidade. Hoje vou ver uma exposição, vou mais tarde escolher um teatro para levar os meus filhos e ler um bom livro - que seja de uma biblioteca publica, que seja emprestado, isso não interessa.

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  2. Tens razão, às vezes nós próprios nos esquecemos do bem que a cultura nos faz, do quanto gostamos de ler um livro (se não temos dinheiro para comprar, há que ler o que temos em casa, ou ir à biblioteca, ou pedir emprestado, tens razão), de parar para ouvir música, e de tantas outras coisas. É tanta coisa à nossa volta que nos deixamos enredar numa teia de preocupações e rotinas que temos de quebrar. Basta querer.

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