A Crise

Pensei muito antes de publicar este texto. Mas, entre discussões políticas, partidárias, recuos e avanços do Governo perante a austeridade que se impõe, debates sobre os novos movimentos sociais, manifestações e o povo que sai à rua, preferi deixar a teoria para outra altura, mostrando o que mudou na minha vida, essencialmente no último ano.

Depois da crise:

- O meu ordenado ficou quase reduzido a metade em relação ao que ganhava como freelancer porque deixaram de me pagar os subsídios de férias e de Natal. Só ainda não me cortaram diretamente o ordenado porque ganho  menos de 1500 euros (têm consciência de que os funcionários do Estado e de empresas com participação do Estado estão neste estado há mais de um ano, certo?)

- Sou muito mal paga para o trabalho que faço e para a experiência profissional que tenho (não sou a única, bem sei).

- Continuo a não fazer parte do quadro da empresa, apenas vou somando contratos.

- Vendo roupa para me ajudar a pagar as despesas do dia-a-dia: o que me entra na conta bancária dá para pagar o aluguer da casa, água e luz mas o que sobre não chega para fazer compras para o resto do mês, pagar o que gasto na farmácia ou no médico.

- Olho duas vezes para um iogurte antes de o comer. Tenho mesmo fome ou vontade de comer? Em caso de dúvida, fecho o frigorífico e encolho o estômago, ou opto por um copo de leite, que sempre é mais barato.

- Transformo um bife de frango num jantar para três juntando-lhe arroz e salsichas.

- Como menos para fazer render as refeições (os restos servem para o almoço do dia seguinte, às vezes dos dias seguintes ou da semana toda, se chegarem para tanto).

- Quando vou a casa da minha mãe ou de outro familiar e me oferecem comida para levar dou graças a Deus (e não sou crente).

- Vou muito menos vezes a casa da minha mãe e de familiares porque não tenho dinheiro para a gasolina e portagens.

- Mudei o meu filho para um jardim-de-infância público. Tiro-o de lá às 16h apesar de, supostamente, ser universal o direito ao prolongamento de horário gratuito até às 17h ou 17h30, na escola onde ele está não é bem assim.

- Só entro num shopping por razões de extrema necessidade, ou seja, raramente lá ponho os pés.

- Deixei de "ver montras".

- Não vou de férias.

- Continuo a ter uma televisão enorme do século passado que me ocupa quase metade da sala (mas serve muito bem).

- Pondero deixar de ter TV Cabo porque não sei se vou ter dinheiro para isso no próximo ano.

- Regressar a casa da minha mãe podem bem ser a minha a única opção se ficar desempregada.

- Quando tenho de ir ao supermercado com o meu filho de três anos ele pergunta se estamos no Jumbo, porque "no Jumbo é mais barato" e se as coisas que estou a por no carrinho são baratas.

- O meu filho pergunta-me se pode comer bolicao quando tiver seis anos, porque o bolicao "é mais barato" (maldita publicidade)

- Estou muito mais gira e elegante do que antes e admito que possa ficar ainda mais, com os cortes salariais prometidos para 2013, que me vão deixar a ganhar o que me pagavam quando me iniciei na profissão e é manifestamente insuficiente para eu me alimentar a meu filho.

- Lamento que não percebam que, apesar de não andar maltrapilha e suja, estou a passar por dificuldades sérias. Como dizia uma grande amiga que mora em Madrid e também está a sofrer a crise na pele, posso falar mais alto, mas não dá para falar de forma mais clara.

- Chateia-me mais do que nunca ouvir queixas de quem não tem problemas nenhuns.

- Chateia-me mesmo muito ter uma hérnia cervical que já me fez gastar balúrdios em consultas e fisioterapia e continua a massacrar-me as costas com dores.

- Perdi o medo. De falar, de ficar desempregada, de ter de mudar de vida, de não ter a vida que sonhei, de lutar pelo que acho justo.


Antes da crise:

- Arranjei facilmente emprego no fim do estágio, a ganhar razoavelmente bem para quem está a começar. Era o que eu pensava na altura, porque (vejam bem!) imaginava que dar o meu máximo, esforçar-me, trabalhar horas a fio, deixar folgas para trás e entregar-me de corpo e alma ao trabalho traria recompensas - ao fim de algum tempo, achava eu, o meu ordenado seria ajustado e acabaria por ser promovida.

- Ao fim de três anos e outros tantos contratos a empresa mudou de dono e despediu-me

- Um mês depois "readmitiu-me" a recibos verdes (eu, burra, ainda cheia de idealismos, aceitei).

- Ia de férias, nem que fosse para o Alentejo.

- Depois de muita insistência meteram-me no quadro, tirando-me parte do salário para pagar a segurança social

- Um ano depois de me terem metido no quadro a empresa fechou e eu fiquei desempregada

- Trabalhei durante três anos a recibos verdes, das 9h às 23h, muitas vezes incluindo fins-de-semana.

- Arranjei um emprego com contrato e horário de trabalho três meses depois de o meu filho nascer. Aceitei ganhar menos do que ganhava como freelancer (deve ter sido fruto da privação de sono)

- Gastei mais do que devia em roupa, mas não o suficiente para ter tido outros luxos, como fazer grandes viagens, comprar uma casa, um LCD, um iphone ou ipad.

- Ia ao shopping só por ir, e já que lá estava aproveitava para ver se "via alguma coisa" que me agradasse.

- Almoçava e jantava fora de casa.

- Quando ia a casa da minha mãe e ela tentava encher-me sacos com carne, peixe e outros produtos alimentares para eu levar, ficava irritada.



6 comentários:

  1. Respiro...é um aperto. Sei que a tua situação e de tantos outros como tu é do mais agoniante que há. Principalmente quando se tem filhos. Não estou nem perto de tal aperto, porque felizmente o pai cá de casa tem um bom trabalho. Mas muitas coisas que aqui descreves eu também as faço, penso que por medo, por insegurança e por saber que em caso de 'azar' não tenho qualquer tipo de rede familiar. O que é mais triste é que estão nesta situação pessoas que trabalham todos os dias, são qualificadas e competentes e ainda assim quase não conseguem 'sobreviver'. A ti, desejo que o teu aperto se acalme brevemente. Abraço.

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  2. Compreendo e sinto também as tuas palavras. Com o desemprego, há dias em que a fé parece que se escapa entre os dedos.

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  3. Também sei que estou mais magra por causa das poupanças e não tenho filhos exatamente por causa das poucas condições em que se vive atualmente. Come-se menos, estica-se mais o dinheiro para chegar para tudo. Por cá, a ajuda dos pais também é muito bem vindo e corta-se em tudo o que não é tão necessário. A roupa de há 4 anos continua a estar muito bem e não é por isso que ando mal arranjada. Os recibos verdes também obrigam a uma gestão muito mais apertada das finanças domésticas!
    no entanto, acho que tudo isto que se está a passar, aprendemos a valorizar muito mais as coisas que temos!
    Um abraço apertado!

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  4. O facto de teres perdido o medo é a coisa mais positiva de todas.
    Vive-se ou sobrevive-se mas não se desiste facilmente. E aprende-se a viver de outra maneira.
    Coragem e muita visulaização do que queres mudar na tua vida.

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  5. Como o J. Palma dizia... Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar (não há mais nada a fazer, senão continuar até não poder mais). Força!

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  6. Como me revi em algumas frases! Então esta: "Arranjei facilmente emprego no fim do estágio, a ganhar razoavelmente bem para quem está a começar. Era o que eu pensava na altura, porque (vejam bem!) imaginava que dar o meu máximo, esforçar-me, trabalhar horas a fio, deixar folgas para trás e entregar-me de corpo e alma ao trabalho traria recompensas - ao fim de algum tempo, achava eu, o meu ordenado seria ajustado e acabaria por ser promovida." Que ingénua eu era!

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