Quem deitou fora arrependeu-se. Ou não?

O século XXI pode muito bem vir a ser o século do "não deites nada fora porque vai servir-te para alguma coisa". Depois da época do consumir e deitar fora sem pensar em mais nada instalou-se um pouco por todo o lado uma nostalgia que começou apenas por se traduzir em recordar. Lembrar as músicas, as roupas ou os desenhos animados de uma altura em que quase todos víamos e ouvíamos o mesmo porque os canais de televisão eram só dois e as lojas meia dúzia, não havia nada do que se pareça com a multiplicidade de escolha atual.

Como as memórias são comuns, foi fácil iniciar pequenos ou grandes grupos de aficionados por recordações da infância e criar movimentos como o que foi lançado (com sucesso) por Nuno Markl para a reedição do gelado fizz limão. Sim, ele mesmo que depois criou toda uma Caderneta de Cromos nas manhãs da Rádio Comercial, com direito à versão em papel. As memórias são as mesmas, mas se muitos deitaram fora o que a dada altura da vida consideraram tralha, outros houve que as guardaram. Foi muito à custa deles que se reuniram informações precisas sobre lembranças vagas e ainda se trocam, compram e vendem bonecos de PVC ou outras preciosidades, essencialmente dos anos 80 e 90 do século passado. 

A nostalgia ganhou corpo e forma em inúmeros projetos, novos artistas e "crafters" começaram a reinventar peças e técnicas que já só as nossas avós sabiam ensinar, o kitch ganhou graça, o crochet colorido afinal não é assim tão mau. 

Na moda, percebeu-se a apetência pelo vintage e deu-se novas roupagens a formas de roupas e sapatos que ficaram famosos pelo menos desde os anos 20. Quem deitou fora, arrependeu-se. Não há nada mais chique do que "the real thing", o vestido acabrunhado no baú da avó, os sapatos escondidos no sótão da mãe, a carteira que a tia não deitou fora. Até as lojas e feiras de roupa em segunda mão cresceram em Portugal, ainda que a apetência dos consumidores nacionais por peças usadas esteja muito distante da que existe noutros países. 

Deitar fora é destruir memórias que as fotografias não satisfazem. Quem deitou fora percebeu o desperdício, arrependeu-se, percebeu que podia agora voltar a usar, que tudo pode voltar a ter utilidade, que mesmo o que está estragado satisfaz curiosidades e apetência pelo passado. E pode servir de inspiração para o novo.

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